A Diáspora no judaísmo



Marivan Soares Ramos[1]
(19/08/2013)



Motivação
Muitas são as mudanças em nossas vidas. Algumas são provocadas de um modo voluntário, como por exemplo, quando se decide mudar de cidade em busca de algo melhor para si, ou para a sua família, ou ainda, quando se descobre um chamado para realizar uma missão em terras estrangeiras. Mas, às vezes existem mudanças que são provocadas em nossas vidas de um modo involuntário, como por exemplo, quando se é forçado a deixar a terra onde mora por falta de comida, ou ainda, quando a pessoa se sente obrigada a deixar sua pátria, porque foi expulso dela, por invasores que destroem, saqueiam e a força faz as pessoas, que são nativas daquela terra, a buscarem uma nova vida como imigrantes em uma nova sociedade.
Gostaria, neste espaço gentilmente cedido pelo jornal Transcendente, aqui de refletir sobre as mais diversas saídas, expulsões, de um povo muito conhecido por nós. Este povo, que historicamente, é um dos povos mais antigos da história humana.
Um povo que trouxe diversas contribuições para nossa sociedade, como por exemplo, influenciou-nos com sua arte, com sua poesia, com suas canções, com sua culinária. Enfim, são diversos os traços culturais que este povo impregnou em nossa cultura. Mas a mais emblemática foi à fé na Revelação do Deus de seus pais. O Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó. Refiro-me ao povo de Israel, o povo judeu.
Gostaria de partilhar com vocês um pouco das angústias que este povo viveu ao longo da sua história. Não tenho a pretensão de esgotar o assunto, mas deixo o convite a todas e a todos que são apaixonados pelas Sagradas Escrituras a empreender esta viagem comigo.

Boa leitura.

O termo diáspora
Diáspora é um substantivo feminino com origem no termo grego diasporá e significa “dispersão de povos”, por motivos políticos ou religiosos. Já na língua hebraica o termo é tefotzah (cf. Jr 25,34), “dispersado”, ou galah, “exílio”. Estes termos referem-se, neste artigo, a dispersão do povo judeu pelo mundo e a formação das comunidades judaicas fora do seu país, Israel.

As diásporas do povo judeu nas Sagradas Escrituras
Partindo do ponto de vista das Sagradas Escrituras, pode-se constatar diversos momentos de dispersão do povo judeu de seu país.
A primeira delas ocorreu por volta do ano de 722 a.C.. Quando o Reino do Norte (Israel), cuja capital era Samaria, foi atacado e destruído (cf. 2Rs 17), pela grande potência da época os Assírios. Diz o texto bíblico: No nono ano de Oséias, o rei da Assíria tomou Samaria e deportou Israel para a Assíria...(2Rs 17,5-6).
A segunda, em geral, se atribui por volta do ano de 586 a.C., por ocasião da invasão do imperador babilônico Nabucodonosor, a cidade Santa de Jerusalém e lá saqueou os tesouros do Templo e o destruiu (cf. 2Rs 25). Novamente ouçamos o texto: No quinto mês, no dia sete [...], Nabuzardã , comandante da guarda, oficial do rei da Babilônia, fez sua entrada em Jerusalém. Incendiou o Templo do Senhor [...] Nabuzardã, comandante da guarda, exilou o resto da população que tinha ficado na cidade...(2Rs 25, 8-11).
A terceira aconteceu muitos séculos depois, por volta do ano 70 d.C.. Quando os romanos destruíram Jerusalém e o seu Santuário. Por ocasião, da primeira guerra judaica (66 -70), contra o Império Romano.
A quarta aconteceu por volta do ano de 135 d.C.. Por ocasião da segunda guerra judaica contra o Império Romano, na época do Imperador Adriano. O que culminou com a expulsão definitiva dos judeus da cidade santa de Jerusalém e da mudança de nome da cidade. Ela passou-se a se chamar, a partir daquela data, Aelia Capitolina. E visando destruir a identidade daquele povo, judeu, Adriano impôs a todo território de Israel o nome de “Palestina” (num outro momento poderemos refletir quais foram as motivações de Adriano pela escolha desse nome).
Esta diáspora fez com que os judeus se espalhassem para países da Ásia Menor e para o sul da Europa. Os judeus que se estabeleceram nos países do Leste Europeu são conhecidos como Asquenazí (os netos de Noé). Já os judeus que se estabeleceram no norte da África são conhecidos como Sefaradins e migraram para península Ibérica (Espanha e Portugal). Expulsos, uma vez mais, de lá, por volta do século XV, migram para os Países Baixos, Bálcãs, Turquia e, motivados pela colonização européia, chegam ao novo continente, o americano.
Enfim, observamos até aqui as mais diversas dispersões do povo judeu mundo afora. As motivações dessas dispersões, segundo os textos bíblicos, transitam desde questões econômicas, falta de pagamento dos impostos as grandes potências dominadoras da época, até as questões religiosas como, a infidelidade do povo ao seu Deus.

Uma possível leitura da diáspora
É possível fazer diversas leituras da diáspora do povo judeu. Aqui, nos limitamos a uma leitura do ponto de vista teológico.
Houve um tempo, na Idade Antiga, que a leitura que se fazia da diáspora do povo judeu seria um castigo, a este povo, pela não aceitação do Cristo como seu Senhor. E a conseqüência deste castigo, para alguns na época, era exatamente a perda da terra. Mas qual é o significado da terra para o povo judeu?

A Promessa de Deus ao povo judeu
Este tema da terra é muito caro a tradição do povo judeu. Pois foi a terra que assumiu a centralidade da promessa do Senhor ao patriarca Abraão (cf. Gn 15,7). É emblemático o relato que encontramos em Gn 50,24-25, sobre o desejo do povo de viver na terra prometida pelo Senhor: Enfim José disse a seus irmãos: “Eu vou morrer, mas Deus vos visitará vos fará subir deste país para a terra que ele prometeu, com juramento a Abraão, Isaac e Jacó”. E José fez os filhos de Israel jurarem: “Quando Deus vos visitar, levarei os meus ossos daqui.”
Isto parece nos explicar este desejo, que é quase uma obsessão, de permanecer na terra, de não se curvar a povos hostis, cuja força de dominação, subtrai, do povo judeu, aquilo que é objeto da promessa de Deus a eles, a posse da terra. Pois, claro está que, mesmo espalhados pelo mundo o próprio Senhor os reconduzirá a terra que a eles um dia prometeu. Como diz um texto na Sagrada Escritura: Naquele dia o Senhor estabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos: “À tua posteridade darei esta terra...”. (Gn 15,18)

Se a terra foi à promessa porque tantas diásporas?
Podemos inferir deste questionamento duas perspectivas; a) positiva; b) negativa.
a)      Perspectiva negativa: Como foi dito acima, muitos viram as constantes expulsões do povo judeu da sua terra, como castigo divino de um povo que se entregou a idolatria, isto é, na linguagem bíblica, que traiu ao seu Deus, se prostituiu com cultos a deuses estranhos. Não eram capazes de se manterem fiéis a proposta do seu Deus e, como conseqüência desta traição, foram punidos com a ira divina. Isto se manifestará com a expulsão e a privação da promessa da posse da terra.
b)      Perspectiva positiva: A afirmação segundo o qual o Senhor “escolheu” (bahar) Israel é um tema dominante do ensinamento do Deuteronômio... O único fundamento da escolha de Deus foi o seu amor e sua lealdade.[2]


O amor de Deus como resposta

Se YHWH se afeiçoou a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais numeroso de todos os povos – pelo contrário: sois o menor dentre os povos! – e sim por amor a vós e para manter a promessa que ele  jurou aos vossos pais; por isso YHWH vos fez sair com mão forte e te resgatou da casa da escravidão , da mão do Faraó, rei do Egito. (Dt 7,7-8)

Como resultado da amorosa eleição do povo de Israel por Deus, a Bíblia nos destaca, pelo menos, duas fortes implicações a este povo:

1ª) Viver a santidade: “Sede santos, porque eu, YHWH vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2).
Escolhido por Deus, Israel é chamado a ser um “povo santo” (cf. Dt 7,6; 14,2). O termo “santo” (Kadôsh) exprime uma situação que consiste, negativamente, em estar separado daquilo que é profano e, positivamente, em ser consagrado ao serviço de Deus.[3]

Neste sentido, o povo de Israel tem consciência da sua origem, da sua identidade. Ainda que as constantes dominações, como vimos acima, abalassem a fé deste povo (é com esta chave de leitura que, também, podemos ler os primeiros onze capítulos do livro do Genesis), não foram suficientes para sucumbir com a consciência da eleição do povo pelo Senhor

2ª) Ser testemunha: “Sim, ele disse: ‘...Também te estabeleci como luz das nações,a fim de que a minha salvação chegue até as extremidades da terra’” (Is 49,6).
Esses textos mostram claramente que a eleição, base da esperança, comportava uma responsabilidade: Israel devia ser, diante das nações, a “testemunha” do Deus único.[4]

Ensina-nos, ainda, o documento da Pontifícia Comissão Bíblica sobre a eleição do povo de Israel que:
 a) a eleição não supõe a rejeição das demais nações;
b) a profecia bíblica, de um modo especial o profeta Amós, trás o significado dessa eleição como responsabilidade muito mais do que privilégio (cf. Am 3,2).[5]

Neste sentido, podemos entender a missão de Israel de levar a fé monoteísta para todos os povos. E aqui podemos compreender, a diáspora como um desígnio de Deus. Não de um Deus que deseja o sofrimento do seu povo, mas de um Deus que nos ensina a tirar lições positivas mesmo quando a realidade insiste em nos mostrar ao contrário. Para que, onde Israel estiver, esteja a presença do Senhor entre eles e com sua fé, com seu comportamento, manifeste esta presença amorosa de Deus na história.


A alteridade como possibilidade de encontro

A história tem nos ensinado duras lições a respeito das diferenças sejam elas, culturais, políticas, econômicas ou religiosas.
Quando assumimos uma posição de exclusivismo, corremos o risco de nos fechar em nossa “verdade” e não aceitar a “verdade” do outro. De não acolher aquele que não é igual a mim, isto é, o que não pensa do jeito que penso o que não acredita nas coisas em que acredito.
O encontro nos possibilita momentos de partilha de conhecimento mútuo. O encontro mostra-nos verdadeiramente como sou, pois é no outro que eu me entendo e me realizo. É na experiência do encontro que eu posso cultivar valores como o amor, a esperança, o perdão, a misericórdia.
Expressões profundamente humanas, que tanto teimamos e não nos associar com elas, porque para muitos, estes sentimentos, parecem revelar toda a fragilidade humana. E aprendemos desde criança que não devemos mostrar ou ceder aos nossos medos, nossas fraquezas. Pois, podemos ser derrotados por nossos inimigos se, por acaso, descobrirem nossos pontos fracos. Será que esta maneira de pensar está certa? É negando meus sentimentos que me imponho como vitorioso? É negando o diferente de mim, que me conheço?



A cultura da paz
Cito o documento Nostra Aetate[6] (Nosso Tempo), que em sua introdução expressa o desejo da Igreja Católica em relação à convivência com as mais diversas religiões e neste sentido, que se construa o Shalom[7], a paz tão esperada por todos nós e que, infelizmente, muitas vezes movidos por uma certa imagem exclusivista, de Deus, nos digladiamos:
Hoje, que o gênero humano se torna cada vez mais unido, e aumentam as relações entre os vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação com as religiões não-cristãs. E, na sua função de fomentar a união e a caridade entre os homens e até entre os povos, considera primeiramente tudo aquilo que os homens têm de comum e os leva à convivência. Com efeito, os homens constituem todos uma só comunidade; todos têm a mesma origem, pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro gênero.[8]






[1] Leigo, Especialista em Cultura Judaico Cristã e Mestrando na área de Teologia pela PUC – SP, com concentração de estudos na área de Bíblia e coordenador do Centro Cristão de Estudos Judaicos
Endereço do Centro de Estudos:
Rua: Francisco Mauricio Klabin, 239, Chácara Klabin- São Paulo - SP
Tel: 5083 1744
 E-mail do Centro de Estudos: ccejsion@yahoo.com – site: sioncentrodeestudos.org (em construção)
[2] .Pontifícia comissão Bíblica. O Povo Judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã, São Paulo, Paulinas, 2001, p. 91
[3] . ibid., p. 91
[4] . Ibid., p. 93
[5] . Ibid., p. 93-94
[6] Declaração do Concílio Vaticano II (1962 – 1965), sobre o Diálogo Inter Religioso.
[7] A raiz hebraica SHLM, expressa uma realização absoluta do ser humano em relação a si e ao seu próximo.
[8] Documentos do Concílio Vaticano II. Declaração Nostra Aetate. nº 1. Paulus: SP.

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