QUARESMA: A VIDA RENASCE.
“Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto…” (Mt 6,17)
Outra Quaresma que
chega! E alguém pode, com certo ar de rotina, multiplicar referências ao
deserto, ao jejum, à esmola e à oração, com o risco da regularidade de tudo o
que, na vida, é habitual, com a tranquila cadência do ano litúrgico, com a
normalidade da passagem das estações.
No
entanto, a quaresma litúrgica, que nos é dada como tempo para voltar ao
essencial, ou seja, ao Evangelho, é tempo pedagógico e terapêutico para
preparar as entranhas e mobilizar o nosso coração frente o acontecimento
central de nossa fé, a Páscoa. Tempo
que provoca uma sacudida em nossa apatia, em nosso andar por inércia.
As
“cinzas” são o símbolo daquilo que
morreu e foi reduzido à sua expressão mínima.
Essa
é a nossa garantia: aquilo que passa pelo fogo, é necessariamente renovado.
Animar-nos, neste tempo de travessia, a acender o fogo para converter em cinza tudo
o que é caduco e ultrapassado em nós; e ao nos ver rodeados de cinzas,
sentir-nos-emos esvaziados de nossas falsas seguranças e ilusões, de nossa
prepotência e auto-centramento.
Das
cinzas surgirá a oportunidade de uma nova vida, mais aberta e expansiva; as
folhas caídas darão lugar ao novo broto e isto implica atrever-nos a viver com
mais intensidade e criatividade, fazendo a dura travessia em direção ao novo
que nos humaniza.
Quê
podemos cultivar nestas próximas semanas quaresmais?
A oração
como busca do Deus compassivo, dificultada pela cultura da
superficialidade; isso implica uma escuta verdadeira da Palavra e uma
sintonia profunda com Aquele que sempre se revelou Mestre e Guia.
|
A esmola
como amor compassivo, que se expressa não em dar o supérfluo, mas fazer-se
presença junto àqueles que mais precisam.
|
O jejum
como resposta austera a um mundo que constantemente excita os apetites.
A conversão
como saída da acomodação, deslocando-se em direção a uma vida mais comprometida
com a justiça evangélica, ou seja, “ajustar-se” ao modo de ser e de agir de
Jesus.
No
Evangelho que abre o tempo da Quaresma, Jesus nos convida a praticar de coração
as disciplinas espirituais da oração,
do jejum e da esmola. Soa estranho falar de “disciplinas” em pleno séc. XXI.
Mas
a palavra “disciplina” vem da mesma raiz de “discípulo”. Poderíamos
defini-la como um modo de proceder proposto por um mestre a seu discípulo para
crescer e emadurecer em diferentes aspectos de sua vida. Há disciplinas
desportivas, artísticas, científicas. A partir da ótica cristã, ser discípulo
de Jesus é segui-lo, escutá-lo, amá-lo e viver as “disciplinas” que nos propõe.
O
problema é que as “disciplinas quaresmais” estão muito desgastadas na Igreja
porque foram transformadas em leis e obrigações, impostas aos fiéis à força.
Disfarçadas como penitências, se apresentavam como imprescindíveis para obter o
perdão de Deus. Mas podemos redescobrir seu sentido a partir da liberdade e do
amor. Assim veremos que são um presente e uma oportunidade privilegiada para
nós, não para merecer o amor de Deus (pois Ele ama a todos incondicionalmente),
mas para celebrar o amor de Deus. Para poder agradecer seu amor, queremos ser
mais livres, mais justos, mais amorosos.
Nesta
perspectiva, as três disciplinas espirituais da Quaresma (oração, jejum e
esmola) encontram sua relação com as três dimensões do amor: a Deus, ao próximo e a si mesmo.
A
oração nos ajuda a amar a
Deus e a entrar em sintonia com Sua vontade. A vivência da oração e de todas as
disciplinas associadas a ela, como o silêncio, a solidão, a reflexão, a
meditação bíblica, a contemplação, a participação na liturgia da comunidade, a leitura
de um livro espiritual, nos preparam e nos ajudam a entrar no fluxo da ação
amorosa de Deus, no mais profundo de nosso ser. Quando oramos, conhecemos e
amamos mais a Deus, intuímos sua passagem em nosso dia-a-dia, alimentamos nossa
vida interior, somos menos superficiais, nos fixamos mais nos dons que Ele nos
concede, damos graças por estarmos rodeados de tanta beleza, mesmo em meio a
uma terrível situação, alimentamos compaixão com aqueles que sofrem, somos mais
conscientes de nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, de nossa maravilhosa dignidade
de filhos e filhas de Deus.
Quê
lugar ocupa Deus em minha vida?
Esmola: a
palavra “esmola” soa mal. Dá ideia de resto, de poder de quem tem sobre o nada
de outros.
O
termo “esmola” deriva do grego “eleéo”, “ter piedade”, cuja forma imperativa
“eleéson” figura no “kyrie” do ato penitencial da celebração eucarística. Antes
que possamos ter piedade dos outros é Deus que teve piedade de nós.
Precisamente porque brota da piedade divina e se modela sobre ela, a esmola
não se reduz a um gesto de ordem apenas material: ela manifesta “um ato que
indica o fazer-se companheiro de viagem de quantos se encontram em
dificuldade”, participando na sua situação, com ternura. O sentido não está em dar
coisas, mas fazer-se dom, oferecer algo de si, importante, significativo. Tem a
ver com abertura de coração, sensibilidade e olhos abertos. É resultado de uma
atenção permanente e ativa, que vai ao encontro do outro, que toma iniciativa,
que se comove. É um estímulo a superar o assistencialismo, que mantém as
diferenças, sustenta a dependência e não promove a cidadania.
A
esmola nos provoca à solidariedade e ao espírito de compaixão, nos move ao serviço,
à presença-qualidade, ao voluntariado, à prática do bem e da justiça.
O
quê prevalece em meu cotidiano: a mística do encontro ou a cultura da
indiferença?
Finalmente,
o jejum nos leva a amar-nos
mais a nós mesmos. Há muitos tipos de jejum, desde aquele que busca fins
terapêuticos até políticos (Gandhi) ou solidários. O desafio do jejum
espiritual é que, para ser efetivo, necessitamos encontrar uma razão nobre: de
quê temos de jejuar ou abster-nos?
Para
muitos, o jejum clássico da comida continuará sendo um grande meio, mas para
outros o jejum difícil e preciso será, por exemplo, desconectar-se um pouco das
redes sociais, livrar-se de um vício ou afeto desordenado, controlar a língua e
não falar mal dos outros, recuperar tempos de silêncio. Em definitiva, o jejum
e a abstinência nos levam à autoestima e a ser “senhor de si” e são sinônimos
de desintoxicar-se, desconectar-se, desapegar-se, desprender-se. Ou seja, fazer
tudo o que nos leva a sermos pessoas mais equilibradas, autônomas e livres, que
tem mais tempo para amar a Deus e ao próximo.
Fazer
jejum para despertar outras fomes: de justiça, de partilha, de compaixão.
-
Quê outras fomes quero ativar em minha vida?
Texto bíblico:
Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Da cabeça
aos pés, perfumar-nos com o aroma da humildade. Toda a aventura para a Páscoa
começará com este gesto de inclinar a cabeça e nos conduzirá, com o Mestre, a
nos colocar aos pés dos outros para lavá-los com a água pura do nosso coração e
cingida, como Ele, com a toalha do serviço humilde.
http://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/1214-a-vida-que-ressurge-das-cinzas
Acesso em: 14 fev 2018.
Comentários
Postar um comentário