A DIFICÍL ARTE DE PASTOREAR


Duas perspectivas

Hoje é muito forte na sociedade aquilo que se define, como grande manifestação religiosa, o trânsito religioso, isto é expressivo e relevante porque nos indica uma acentuada busca do ser humano ao sagrado, assim sendo, pode-se constatar, no trânsito religioso, aquela força que motiva as pessoas para encontrar esperança como sentido último para seu viver. Assim como uma moeda que tem dois lados distintos esse fenômeno se apresenta com duas perspectivas bem distintas.

Por um lado (perspectiva positiva), o trânsito religioso nos revela a busca do humano ao sagrado, o desejo de se encontrar, de encontrar sua vocação, ao partir do dado religioso, isto é, da sua fé, o humano não se contenta enquanto não se encontra com seu Criador. Para citar Agostinho de Hipona, "eu me inquietava e meu coração só descansou quando encontrou a ti". Por melhores que sejam nossas possibilidades, seja no nível, econômico, ou ainda, por mais saciados, materialmente falando, que alguém se sinta, a verdadeira alegria se dá no encontro com Deus, e Deus pode assumir uma diversidade de nomes segundo a cultura local, portanto no plano religioso a questão nominal de Deus nos parece secundário, e o que realmente importa é o ser humano que busca quase que incansavelmente essa realidade (Deus) que o transcende, que escapa a sua dominação, e isso trás à sensação de pequenez, de limitação, isto se realiza ao concluir que essa experiência, religiosa, esta para ele, o ser humano, como a água esta para o mar, assim é, ou deveria ser, o curso natural da existência humana, porque o ser humano é dotado de necessidades e desejos, portanto Deus, segundo minha crença, vem ao nosso encontro como a realização última de nossas necessidades, entretanto a experiência que se faz do sagrado, segundo a concepção cristã, não se molda, como finalidade, na dimensão individual, mas sim numa dimensão do comunitário. A fé cristã nos interpela para uma vivência fraterna, uma busca de comunhão, aonde o isolamento do indivíduo não corresponde com os ensinamentos cristãos. Aqui não se nega a necessidade de interiorização, que também é próprio da fé cristã, mas sim aquele isolamento que cria obstáculos para uma verdadeira vida fraterna, onde os valores como a partilha, o perdão, o amor, a amizade sempre se da a partir da relação com o outro/a, e não meramente em si mesmo. 

Por outro lado (perspectiva negativa), o trânsito religioso revela uma, certa, leitura egoísta de Deus, onde, a partir dessa realidade de uma busca do sagrado, as pessoas acabam por criar um sincretismo religioso perigoso, pois buscam uma religião que se molde as suas necessidades, aos seus desejos, e, portanto misturam (sincretismo) diversos elementos doutrinários no anseio de construírem, talvez quem sabe, a religião perfeita. Com isso, surge um grande número de pessoas que buscam na religião apenas seus interesses sem o menor vínculo ou comprometimento com a proposta de seu fundador, logo esse jeito de agir implica na alienação total do ser. Dessa maneira rompe-se com a proposta da fé cristã que causou, e ainda deve causar impacto na sociedade, por conta de uma experiência religiosa que leva os indivíduos a um novo comportamento, na linguagem cristã, um novo homem uma nova mulher, no entanto o grande problema do sincretismo reside exatamente aí, pois as pessoas, na sociedade em que se vive hoje, têm uma forte tendência em buscar facilidades que não comprometam sua rotina, este, por exemplo, é o grande valor que se dá no campo da tecnologia. Diante de uma sociedade de descartáveis, também se cria uma religiosidade descartável, isto é, só tem valor enquanto se extraí vantagens, do contrário se descarta e busca uma nova forma de religiosidade que, mais uma vez, se molde as suas necessidades.

É nesse complexo panorama social que a Igreja está inserida.

Diante disso devem-se formular algumas questões. De que maneira a igreja, representada nos seus líderes, deve se comportar com tal situação complexa e desconcertante nos dias atuais? Quais foram às mudanças significativas, num contexto social seja rural e ou urbano, que marcaram a atuação da igreja numa perspectiva missionária?

Importante, como primeiro aspecto, é pensar o termo ministério pastoral em seu significado primeiro, isto é, uma realidade, ou prática, que nos move ao encontro, serviço ao outro. Partindo dessa perspectiva de compreensão, o ministério pastoral é tema fundamental dentro da tradição bíblica.

O PASTOREIO NA PERSPECTIVA BÍBLICA

 O conceito de pastoreio e de serviço é marca registrada de Deus na história, foi Ele quem nos ensinou por primeiro essa importante dimensão da vida, isto é, uma vida comprometida, portanto responsável, com as demais vidas que nos cercam. Vejamos algumas passagens bíblicas[1] que trás a temática do pastoreio que implica cuidado para com o outro: 

"Salvai, Senhor, vosso povo e abençoai a vossa herança; sede seu pastor, levai-o nos braços eternamente". (Sl 27,9)
"Ele é nosso Deus; nós somos o povo de que ele é o pastor, as ovelhas que as suas mãos conduzem. Oxalá ouvísseis hoje a sua voz:" (Sl 94,7)
"Nações, escutai a palavra do Senhor; levai a notícia às ilhas longínquas e dizei: Aquele que dispersou Israel o reunirá, e o guardará, qual pastor o seu rebanho". (Jr 31,10)
"Como o pastor se inquieta por causa de seu rebanho, quando se acha no meio de suas ovelhas tresmalhadas, assim me inquietarei por causa do meu; eu o reconduzirei de todos os lugares por onde tinha sido disperso num dia de nuvens e de trevas". (Ez 34,12)
"Eu sou o bom pastor. O bom pastor expõe a sua vida pelas ovelhas". (Jo 10,11)

            Dessa forma a experiência pastoral deve ter esse comprometimento, de não viver a fé apenas na dimensão espiritual, mas complementando-a com a dimensão do serviço ao próximo. São inúmeras as experiências que vivemos a partir dessa dimensão de disponibilidade a qual, nos parece, ser o modelo de toda e qualquer comunidade cristã, que é o modelo da Igreja do “Lava pés” (cf. Jo 13, 5), uma igreja realmente comprometida e encarnada na vida do povo.

            Esse modelo eclesial, de Igreja serviço, é sem dúvidas a forte e atuante presença do Reino de Deus entre nós, pois, “os discursos emocionam, mas o testemunho convence”.

            Desse modo o pastor, pastora, que sem dúvidas é um vocacionado deve ter como modelo de pastoreio a Trindade Santa e buscar o equilíbrio entre as duas missões, a do Filho e a do Espírito Santo, e fazendo delas a sua missão.

 UMA GRANDE TENTAÇÃO

 É conhecido que ao longo da história da Igreja surgiram movimentos, que por vezes colocaram a ordotoxia da doutrina cristã em perigo. Uma grande tentação que a Igreja sempre correu é a do movimento apocaliptismo. Este movimento em nossos dias é muito forte, sua doutrina está espalhada em diversos segmentos do cristianismo. Sua doutrina diz não acreditar na possibilidade da atuação divina na história humana. Esta corrente apocaliptista esvazia totalmente a compreensão da história humana e conseqüentemente à atuação dos cristãos frentes aos desafios do mundo, e o pior é que se tenta a argumentação desse esvaziamento sob o pretexto da Parusia.

Faz-se necessário destacar que esse movimento, apocaliptismo, não tem as mesmas características do movimento apocalíptico, ou teologia apocalíptica que nasceu na cultura judaica (séc. III –II a.C.) e teve forte influência nas primeiras comunidades cristãs dos séculos I e II, onde notadamente se destacava pelo incentivo a resistência contra os dominadores, e precisamente por isso tanto a fé judaica quanto a fé cristã não sucumbiram diante das perseguições. Talvez a única semelhança entre a apocalíptica bíblica e o apocaliptismo é o “DIA DO SENHOR” (cf. Is 13,9; Jl 2,11), e esse é o grande risco, seja desse movimento ou teologia, pois, consiste numa visão determinista da história, onde se espera uma intervenção “mágica” de Deus, nisso consiste o perigo porque se sabe que Deus, de fato, age na história mais a partir de, uma mediação, nós (cf. Ex 3,10; Jd 8,33).

Como quer que seja, segundo esse movimento, a história como tal fica fora do interesse do cristão. Com isto, esta corrente doutrinária, descarta toda a importância da história para nossa vida. O que importa é viver a iminência da volta do Cristo, para eles, não existe intervalo (história) entre a morte de Jesus e a sua volta.[2]

O apóstolo dos gentios, Paulo de Tarso, ou alguns dos seus seguidores, já nos primórdios do cristianismo advertiu severamente a comunidade de Tessâlonica, para muitos que não queriam sequer trabalhar, e ficar apenas esperando a “iminente” vinda de Cristo, dessa maneira esses pseudos seguidores de Cristo se mantinham alienados aos problemas sociais, e é nesse contexto que segue esse conselho: “Quem não quer trabalhar que não coma” (2Tes 3,10).

É preciso advertir as pessoas que assim pensam, da forma como Lucas relata em Atos dos Apóstolos:
Estando a olhar atentamente para o céu, enquanto ele se ia, dois homens vestidos de branco encontram-se junto deles lhes disseram: ‘Homens da Galiléia, porque estais ai a olhar para o céu? Este Jesus, o que foi arrebatado dentre vós para o céu assim virá, do mesmo modo como vistes partir para o céu’” (At 1, 10-11).

O Reino se fará presente isto é uma certeza da qual temos e nutrimos esse desejo por nossa fé, também sabemos tal qual a parábola que Jesus contou do grão de mostarda e do fermento (cf. Mt 13, 31-33) que o crescimento, seja da semente ou do fermento, não depende de nós, e sim da graça de Deus, no entanto sem nossa ação ao tomar a semente ou o fermento e realizar seu propósito, isto é, por a semente na terra, e o fermento na massa, seu crescimento não acontecerá. É neste sentido que se entende a importância de um comprometimento total no crescimento do Reino, por essa razão não é possível ficar a margem, ou transferir nossa responsabilidade, da construção do Reino, apenas para Deus.

O SER, ESTAR PASTOR/A

O ser, ou ainda mais significativo do que ser seja, o estar pastor/a, é em primeiro lugar tomar consciência de ser chamado por Deus e a partir desse chamado fazer uma nova opção de vida, que invariavelmente voltar-se-á para o serviço ao próximo. O verdadeiro líder de comunidade é aquele/la que busca ler os sinais dos tempos, isto é, diante de uma cultura massificante, que é próprio das grandes cidades, é preciso transmitir, estabelecer, e sustentar, valores éticos e morais segundo nossa tradição religiosa cristã, pois essa tradição, seguramente pode contribuir para um novo comportamento social.

Pressionados pelo impacto da modernidade, e do paradigma da conquista, os líderes comunitários, aqui especificamente os religiosos têm como grande desafio o cuidado e a atenção necessária para aqueles que foram confiados ao seu ministério. A teologia pastoral tem como grande objetivo dar direção, estabelecer e orientar para uma nova conduta de vida, olhar com cuidado principalmente aos mais necessitados, ou ainda numa perspectiva análoga ao ensinamento de Jesus: “e ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor” (Mc 6, 34), assim deve ser a atitude daqueles que lhe foram confiados o ministério do pastoreio: tomar-se de compaixão pelo povo que sofre, e que não tem uma direção segura.

  Nesse sentido o pastor/a busca criar, para aqueles/as que lhes foram confiados, uma consciência libertadora onde Deus não nos aprisiona no curral, mas sim nos educa a viver no aprisco[3], pois o curral nos limita em nossa liberdade, ao passo que o aprisco nos convida a vivermos a incansável busca da criatividade, o curral nos massifica nos destitui de nossa identidade e nos faz parecermos todos iguais, pois não se trata mais de indivíduos e sim de números, o aprisco ao contrário fortalece a individualidade de cada ser como o específico da pessoa, e essa dimensão, seguramente, é a constituição da liberdade humana, o curral cria consciência de determinismo, ou seja, prevalece à idéia que as coisas são assim mesmo por vontade de Deus, por seu turno o aprisco zela por nossa capacidade transformadora que nos é a garantia que o nosso futuro é fruto de nossas escolhas, sejam elas do passado, sejam elas do presente.


            CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, acredito que o grande desafio que se impõe ao ministério pastoral, e isso de alguma maneira se estende para toda a igreja entendendo igreja como todo o povo de Deus, nos dias atuais, é a passagem, a transição, de uma consciência do curral, para uma consciência do aprisco, da mentalidade individualista para uma mentalidade comunitária, da prática mercantilista para uma prática humanística, de um modelo eclesiológico do poder para um modelo eclesiológico do serviço, e isso sem dúvida alguma vai demandar, dessas pessoas comprometidas (batizadas) com o chamado ao ministério pastoral, uma forte convicção e um tremendo comprometimento com aquilo em que se acredita, pois tudo, ou quase tudo, conspira contra esses valores dos quais esses homens, e mulheres, vocacionados acreditam que possam mudar as relações humanas e com isso assegurar um novo modelo de vida social.

Para melhor ilustrar essa mudança social da qual nós crentes em Deus nos propomos, e acreditamos ser possível realizar, faço uso das palavras da Bíblia que descrevem uma nova realidade a partir da transformação humana aliada a vontade divina:

“Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto... Não se fatigarão inutilmente, nem gerarão filhos para a desgraça, porque constituirão a raça dos benditos de YHWH... Acontecerá então que antes de me invocarem, eu já lhes terei respondido; enquanto ainda estiverem falando, eu já os terei atendido. O lobo e o cordeiro pastarão juntos e o leão comerá feno com o boi. Quanto à serpente, o pó será seu alimento. Não se fará mal nem violência em todo o meu monte santo, diz YHWH” (Is 65, 21-25).
 
 “Vi então um céu novo e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra se foram, e o mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido” (Apc 21, 1-2).     




[1] Uso a Bíblia de Jerusalém para todas as citações bíblicas.
[2] . Arosio. E. 2000 Catástrofe ou Esperança. Paulus.1998

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O INEFAVEL NOME DE DEUS

AFONSO MARIA RATISBONNE e THEODORO RATISBONNE

Carta às Conferências Episcopais sobre "o Nome de Deus"