A relação entre judaísmo e cristianismo no séc. I

IGREJA E SINAGOGA
  1. Introdução
1.1.   Fontes de conhecimento do judaísmo e do cristianismo da época
1.2.   Definição de Igreja Primitiva

  1. Primeiro período cristão 30 a 50: movimento de renovação do judaísmo
2.1.1.      A Igreja de Jerusalém
2.1.2.      O primeiro conflito entre judeus e judeu-cristãos na Igreja de Jerusalém
2.1.3.   A Igreja de Antioquia
2.1.3.1. O primeiro conflito na Igreja de Antioquia
2.1.3.2. O segundo conflito na Igreja de Antioquia

3. O segundo período do cristianismo 50-70: as missões paulinas
3.1.  Igreja paulina e judaísmo
3.1.2. Conflito na Gália
3.1.3. O conflito judeu-cristão em Roma

4.      O terceiro período do cristianismo 70-90: em busca de uma identidade
4.1. O Concílio de Yavné
                             
5. Quarto período após o ano 90: A separação dos dois caminhos
5.1. A grande conquista heleno-cristã
5.2. O conflito entre o judeu- cristão e a grande Igreja.

6.      Bibliografia


1.      Introdução
A Igreja é fruto da fé no Jesus Ressuscitado, ela nasce e cresce no meio judaico onde Jesus viveu em plena harmonia de modo que no começo, não se podia fazer a diferença entre os judeus e os primeiros cristãos. Esta íntima ligação do cristianismo e do judaísmo deve nos fazer compreender que é impossível se chegar a uma compreensão coerente do Novo Testamento e, portanto da fé cristã sem levar em conta esta íntima ligação do cristianismo com o judaísmo. A separação entre judeus e cristãos, que resultou na formação da Igreja Cristã, se deu pouco a pouco no decorrer da história”.[1]

1.1. Fontes de conhecimento do judaísmo e do cristianismo da época[2]
1.1.1.      Fontes literárias hebraicas e aramaicas;
a)      Escrituras do 1º. Testamento
b)      Literatura apócrifa conservada em inúmeras tradições
c)      Literatura Tradição Oral (Mishná, Talmude)
1.1.2.      Fontes literárias Judaica-Grego-Latina
a)      Judaica: Flávio Josefo e Fílon de Alexandria
b)      Romana: Plínio, Tácito, Suetônio
1.1.3.      Fontes literárias Cristã
a)      Escrituras do 2º Testamento
b)      Literatura apócrifa
c)      Os Pais da Igreja

1.2. Definição de Igreja primitiva
Jesus começa sua pregação no ano 28 e morre no final do ano 30. Após a sua morte há uma verdadeira decepção os discípulos se dispersam com medo, se fecham, pois, temem ter a mesmo destino de Jesus (cf. Lc 24; Jo 21) [3]. Eles percebem uma contradição; o Messias que deveria estabelecer o reino de Deus (cf. At 1,6) morre da maneira mais cruel possível para época. Logo após esse desânimo os discípulos, que acreditavam na ressurreição, pregam que Jesus ressuscitou, um profeta poderoso como ele não poderia morrer e sobre tudo suas idéias deveriam continuar vivas e libertando o povo. É em torno dessa experiência de Jesus ressuscitado que vão nascer às primeiras comunidades chamadas Ekklesia, cuja origem vem do Grego que quer dizer assembléia, um agrupamento de pessoas. Nesse período, a palavra Igreja não tinha o mesmo sentido que ela adquiriu hoje, Igreja, corpo hierárquico, ela designava apenas um grupo de pessoas partilhando o mesmo ponto de vista, sobre tudo um ponto de vista político. No caso dos cristãos, ela designava um grupo de judeus que acreditavam que Jesus o crucificado, era realmente o Messias enviado por Deus e que este Jesus ressuscitou dos mortos e não tardaria a vir estabelecer na terra o Reino de Deus.
Mais tarde com a evolução dos fatos, começaram a fazer parte deste grupo de cristãos outros povos de origem pagã que se convertiam ao cristianismo. É este grupo de cristão, de origem judaica e pagã, que se organiza pouco a pouco no decorrer do primeiro século que é chamado, hoje, de Igreja primitiva. A relação dessa comunidade com os judeus não é externa. Essa comunidade cristã não se sente fora do judaísmo (cf. At 2, 42s). Ela nasce como um grupo no interior mesmo da religião judaica, isto é, dentro da sinagoga e permanece como tal todo o primeiro século do cristianismo, era conhecido como os seguidores do Caminho (cf. At 9, 2).

Este primeiro século do cristianismo é um período no qual, numa completa interação, foi fixado o destino do cristianismo e do judaísmo. Este destino foi resultado de uma relação às vezes harmoniosa e às vezes tensa entre judeus e judeu-cristãos.

Nós podemos dividir este primeiro século do cristianismo em quatro períodos, cada um deles com suas características e problemas próprios, eis eles: O 1º período cristão começa por volta do ano 30 ao ano 50. O 2º período de 50 a70. O 3º período de 70 a 90. O 4º período de 90 a 135.


2.      Primeiro período cristão (30 a 50): movimento de renovação do judaísmo.
Este primeiro período cristão, nós podemos classificar como um período dos apóstolos ou dos companheiros de Jesus mais conhecidos, como Pedro, Tiago, o irmão do senhor e Paulo (primeira geração). Sobre este período são os Atos dos apóstolos que nos informam sobre as relações entre Judeus e Judeu- cristãos. Nesta época os cristãos são chamados de judeu-cristãos porque eles consideram a fé no Messias Jesus como uma forma de participação na Aliança de Israel e de sua lei. Eles acreditam que Deus se revelou na vida e na morte de Jesus, mas não rompem com a fé e com os ritos milenares do judaísmo. Neste período o livro dos Atos nos mostram duas comunidades cristãs, uma situada em Jerusalém e outra em Antioquia na Síria.

2.1. A Igreja de Jerusalém
A primeira comunidade judaico-cristã nasce em Jerusalém. Os cristãos são todos judeus. Eles vivem em torno dos doze apóstolos e têm primeiro Pedro como o chefe, mais tarde Pedro sai de Jerusalém e Tiago assume a responsabilidade da comunidade. Eles freqüentam o templo assiduamente, onde, eles rezam e ensinam (cf. At 2, 42-46), guardam os sábados e as regras da alimentação judaica. Mas ao mesmo tempo eles se reúnem em casa para as orações e para a fração do pão. Eles memorizam os eventos da paixão com a ajuda de um texto que logo se torna escrita, o texto da celebração eucarística.

2.1.1. O primeiro conflito entre judeus e judeu-cristãos na Igreja de Jerusalém
Nos anos 33, portanto, alguns anos após a fundação do movimento de renovação do judaísmo (cristianismo) aconteceu o primeiro conflito entre o judaísmo comum e a nova fé judaica. Essa crise foi causada pelo o movimento Judeu-cristão helenista. Os membros deste movimento eram recrutados entre os Judeus ricos, cultos educados na língua e na cultura grega. Entre os membros deste movimento se encontra Filipe e Estevão. Influenciado pelo universo grego, eles opõem ao ritualismo de Jerusalém, uma interpretação moral da Torah. Eles utilizam da liberdade de Jesus para julgar secundária a preservação da pureza ritual e a observação dos alimentos proibidos. Este tipo de liberdade combina com certa distância em relação à sinagoga e ao Templo (Atos 6, 13-14).
A causa principal desse primeiro conflito é citado em At 7, 47-51 e diz respeito justamente ao Templo. Estevão relê toda história da promessa para provar que Deus nunca se ligou a uma morada feita por mãos humanas. Essa contestação custa lhe a vida e a expulsão dos membros desse movimento para fora de Jerusalém (At8, 1b4).
Porém vale a pena observar que o conflito não é por causa da fé em Jesus, mas por causa de certas liberdades com relação a certas regras judaicas. O conflito não diz a respeito de uma perseguição contra a primeira Igreja cristã, mas reflete um desentendimento entre judeus. A comunidade cristã dirigida por Tiago não sofre pressão, pois, ela vive conforme ao judaísmo da época (cf. At 8,1b; 9,26).


2.1.3. A Igreja de Antioquia
Antioquia, capital da Síria, no primeiro século é considerada como a terceira grande cidade do império romano. Antioquia foi, depois de Jerusalém, o primeiro grande centro urbano, onde se instalou o movimento judeu–cristão. Na cidade domina a cultura grega, mas havia lá uma grande comunidade judaica completamente inculturada.
Sobre Igreja de Antioquia os documentos que temos se limita a Epistola de Paulo aos Gálatas 2,11-14 e aos Atos dos apóstolos 11 a 15.
Os Atos dos apóstolos localizam dois eventos importantes em Antioquia; O primeiro é o anúncio da boa nova de Jesus aos gregos e o segundo, é que em Antioquia os apóstolos foram chamados pela primeira vez cristãos (cf. At 11, 26). Como o cristianismo chegou até aos Gregos em Antioquia?  Leia At 11, 19ss.
Segundo o texto, a comunidade de Antioquia nasce depois do problema de Estevão. A perseguição dos helenistas de Jerusalém os força a se dirigir a Antioquia, onde, eles vão Catequizar os pagãos. Os dois grandes chefes dessa comunidade são Barnabé e Paulo. Segundo At 11, 21 Barnabé teria sido enviado pela a comunidade de Jerusalém com o objetivo de orientar a nova comunidade.

2.1.3.1. O primeiro conflito na Igreja de Antioquia
O primeiro problema é contato por At 15 e Gal 2, 10-14. Mesmo se os dois textos narram o fato de maneira diferente eles se combinam em algumas informações.
A promessa de uma salvação sem a circuncisão feita aos helenos pelos missionários em Antioquia agrava a convivência entre os membros das comunidades de Jerusalém e de Antioquia. Segundo os dois textos a razão desta querela é que os cristãos judaizantes de Jerusalém trouxeram a confusão para a comunidade de Antioquia. Eles sustentavam que para os pagãos a circuncisão era condição necessária para obter a salvação. Diante do tumulto criado por tal proposta uma assembléia foi convocada em Jerusalém para decidir a questão (cf. At 15).
Desta reunião participaram os representantes das duas comunidades e mais alguns membros. Lucas cita alguns participantes como Pedro, João, Tiago, da comunidade de Jerusalém e Barnabé e Paulo da comunidade de Antioquia, Paulo acrescenta ainda Tito, um pagão convertido ao cristianismo, sem a circuncisão, cujo caso seria tratado na reunião. A decisão foi à seguinte: Os pagãos não são obrigados a se submeterem a circuncisão.
 Os missionários de Antioquia recebem assim o direito de continuar seus trabalhos juntos aos pagãos sem a obrigação da circuncisão. Porém Lucas observa que quatro condições foram impostas aos pagãos a fim de criar uma boa relação com a comunidade de Jerusalém respeitosa dos ritos. Eles deveriam se abster das “carnes dos sacrifícios pagãos, do sangue, das carnes dos animais não abatidos segundo o ritual, e da imoralidade(At 15,29). Tais prescrições são tiradas de Lv 17-18. Fora decidido também que Pedro continuava o trabalho junto aos judeus enquanto Paulo se ocuparia dos pagãos (cf. Gl 2, 9 ).

2.1.3.2. O segundo conflito na Igreja de Antioquia
O segundo problema decorre do primeiro, a questão central é sempre a circuncisão. O problema ocorre entre Paulo e Pedro.  Alguns dias após a reunião de Jerusalém, Pedro vem Antioquia. Ele se insere no contexto da comunidade, tomando as refeições junto com todos os cristãos. Porém esta inculturação é interrompida com a chegada de alguns membros da comunidade de Jerusalém. Segundo Paulo, depois que os irmãos circuncisos chegaram à comunidade, Pedro recusou-se a comer com os pagãos e se retrai como medo dos circuncisos, de modo que mesmo Barnabé se deixou levar pela hipocrisia de Pedro. Paulo reage firmemente contra Pedro. Logo após Paulo parte em missão para a Ásia menor e Europa sem a companhia de Barnabé. Em suas missões Paulo somente uma vez vai a Antioquia por um curto período (cf. At 18, 22).
A tentativa de se libertar de alguns ritos judaicos mal funciona na comunidade cristã de origem pagã. O que mostra que o cristianismo dos anos 30 a 50 é completamente dependente do judaísmo.

3. O segundo período do cristianismo 50-70: as missões paulinas
O segundo período do cristianismo é caracterizado pelas missões paulinas e pela elaboração de uma nova teologia que às vezes entra em conflito com a teologia já existente no judaísmo. Os temas debatidos são: O papel salutar da Torah, a necessidade da circuncisão, a importância dos rituais alimentares ou cultuais. Porém o debate, que seja entre cristãos ou cristãos e judeus, não é sobre a questão de deixar ou não Israel, todos se sentem Israel, herdeiros das promessas feitas a Abraão e cada um contesta a legitimidade do outro na participação da herança, o conflito é antes de tudo familiar para saber quem é de fato verdadeiro judeu.
Pode-se perceber essa relação, entre judeus e judeus cristãos, no espaço onde essa nova fé era disseminada, como cita o professor Sanders:
eram amplamente constituídas de prosélitos que viviam no âmbito da sinagoga...Tende a ignorar ou ao menos a minimizar um fato fundamental da primitiva expansão cristã, inclusive paulina...Tementes a Deus, semi-prosélitos e prosélitos, que eram abrigo às primeiras células cristãs e serviram de base operacional para Paulo e para outros missionários cristãos”.[4]

3.1.  Igreja paulina e judaísmo
Paulo nasceu em Tarso, importante centro comercial de cultura helenista. Sua formação é grega. Judeu filho de judeus (Fl 3, 5), falava grego, aramaico e hebraico. Ele deve ter tido uma educação superior à educação dos discípulos direto de Jesus. Com grande recurso intelectual, ele sabe se adaptar a cada público seja por cartas o em um discurso direto (cf. 1 Cor 9, 19-22). Mesmo se a teologia paulina permitiu ao cristianismo de configurar sua identidade face ao judaísmo, vale à pena remarcar que Paulo não foi o primeiro a pregar o evangelho para os não judeus. A missão em Antioquia, da qual ele foi um grande líder, o precedeu. Ele não foi também o homem por quem o cristianismo se separou do judaísmo, o divórcio entre cristãos e judeus se deu muito mais tarde. Porém é claro que as gerações futuras se servirão de sua teologia para distanciar o cristianismo do judaísmo. Mas seria esse o objetivo Paulo?
O principal objetivo da missão paulina é fundar comunidades mistas onde as diferencias sociais e religiosas são completamente superadas (cf. Gl 3, 27-28). O que esta em questão aqui é uma nova teologia elaborada a partir da morte e ressurreição de Jesus. A Teologia da graça. Pela morte e ressurreição de Jesus todos se tornaram iguais social e religiosamente. Para Paulo o principio que deve orientar a vida da comunidade é o próprio Cristo. Depois da morte de Cristo, Deus dá a sua graça a cada um incondicionalmente. Se antes a lei fazia a diferença entre os que não obedeciam e os que obedeciam, o ponto de referência agora é o Cristo que dispensa sua graça a todos não pelo merecimento de cada um, mas pela fé (cf. Rm 1, 17). Por este texto Paulo não anula a validade e a importância da lei na vida da comunidade. O seu objetivo é assim de criar uma comunidade onde todos independentes de seus status religiosos e sociais, dados pela lei, possam se sentir iguais professando a fé no Cristo (cf. Gl 3, 28). O papel de Paulo aqui não é também de separar judaísmo do cristianismo.

3.1.2. Conflito na Gália
Paulo também combate por cartas as hostilidades de outras correntes do cristianismo contra sua teologia. Assim, a Epístola aos gálatas, enviada de Éfeso, nos anos50/55, reage contra a predicação de outras correntes cristãs que exortam os gálatas a seguir os rituais judaicos e a circuncisão (cf. 4,8-10; 5, 2-3; 612-13). Os gálatas que foram catequizados por Paulo, parecem dispostos a acolher os conselhos dessa nova corrente cristã. A reposta de Paulo é de uma rara violência, ele os acusa de passar outro Evangelho e não o seu (1, 6-9) Certamente uma outra corrente se infiltrou nesta Igreja. Para esta corrente, pertencer ao Cristo seria pertencer a Israel e, portanto todos deveriam observar os rituais judaicos. Estes missionários poderiam pertencer a Igreja de Jerusalém e talvez agissem sob o comando de Tiago, chefe desta Igreja. Isto mostra que o acordo feito na assembléia de Jerusalém teria sido colocado em causa mais tarde, o que causou o conflito com a doutrina de Paulo. O conflito aqui é familiar.

3.1.3. O conflito judeu-cristão em Roma
Outro conflito entre judeus cristãos e cristãos pagãos se passa em Roma nos anos 58. Neste período o imperador Cláudio expulsa os judeus de Roma (cf. At 18,2) e a comunidade Cristã judaica também fora expulsa. Este fato faz Paulo definir sua posição com relação a Israel. Um longo capítulo na epístola aos romanos (9-11) é dedicado a questão. Paulo sofre do fracasso de sua missão junto a Israel, que recusa o Evangelho, depois de ter rejeitado o Messias. Porém para Paulo nada pode abolir as promessas de salvação que Deus fez ao seu povo. Para Paulo, a este povo pertence à adoção filial, a gloria, as alianças, a legislação, o culto, as promessas (cf. Rm 9,4). Para Paulo, Israel continua Israel povo de Deus e os Cristãos pagãos devem saber que se eles herdam da mesma herança de Israel é porque foram enxertados nesta promessa destinada a Israel. Tais pagãos não devem se orgulhar de sua posição, pois, o que eles têm foi dado em primeiro aos judeus.

4. O terceiro período do cristianismo 70-90: em busca de uma identidade

 Nós podemos caracterizar este período como um período de auto-afirmação do cristianismo, mas também de auto-afirmação do judaísmo. A destruição do Segundo Templo no dia 20 de agosto de 70 teve uma influencia direta na vida do cristianismo e do judaísmo desta época. Privados do símbolo de unidade nacional e do rito de reconciliação com Deus, a fé judaica se encontra numa grande crise. A recomposição de sua identidade vai se refazer em torno do farisaísmo bastante ortodoxo. A conseqüência é clara; a diversidade de correntes judaicas existentes no período do Segundo Templo vai ser substituída por uma ortodoxia ditada pelos Cânones da piedade farisaica.
Para o cristianismo as conseqüências são enormes, tolerados até então, as comunidades cristãs se encontram diante de posições unificadas hostis e exclusivas. Porém o endurecimento do judaísmo não se dá com a mesma intensidade em todo mundo judaico. O conflito maior se dá entre os cristãos que tem uma relação direta com a sinagoga (cf. Jo 9, 22).

5. Quarto período após o ano 90: A separação dos dois caminhos
Os dez últimos anos do primeiro século e os primeiros anos do segundo século do cristianismo são marcados por alguns fatores que vão influenciar diretamente na separação entre judaísmo e cristianismo. Por um lado, temos o judaísmo se afirmando diante do grande desastre de 70, por exemplo, na sua fixação dos livros sagrados e por outro lado, o cristianismo buscando sua identidade e autonomia em relação a sinagoga.

5.1. A grande conquista heleno-cristã
A Igreja heleno-pagã conta com um grande número de fiéis, fruto das missões paulinas. Ela representa uma constelação de Igrejas apostólicas venerando a memória de Pedro e Paulo. Clemente de Roma (ano 95), Inácio de Antioquia (ano 110) e Justino (ano 150) estão entre as figuras eminentes da ortodoxia cristã em formação.
Para se garantir uma identidade os cristãos seguem um caminho paralelo ao dos judeus. Inicia-se o processo de canonização dos Livros Santos, que serão estabelecidos definitivamente somente no IV século e do qual a lista será bastante divergente da lista judaica com o acréscimo dos novos Escritos. Inicia-se também a constituição de um aparelho institucional eclesiástico e adoção de um Credo (Concílios).

5.2. O conflito entre o judeu- cristão e a grande Igreja.
Compreende-se como judeu- cristão, os judeus que aceitaram Jesus como o Messias e que reconheceram a divindade do Cristo, mas continuaram a observar a Torah. Esses judeu-cristãos se alimentam suficientemente da Torah, compreendida como uma aliança para se sentirem Israel, do outro lado eles tem uma ligação forte com Jesus, necessária para serem reconhecido como cristãos. Para eles a fé em Jesus não contradiz, mas ao contrário fortifica a ligação com Israel.
É difícil de descrever a situação do Judeu-cristianismo no começo do segundo século, as informações sobre este período são todas tardias e tendenciosas. As únicas fontes de informação disponíveis são os padres da Igreja. Santo Irineu (ano 180) nos informa que:
aqueles que são chamados ebonitas ( uma facção judeu-cristã) eles admitem que o mundo foi feito pelo o verdadeiro Deus, mas eles utilizam somente o Evangelho de Mateus, rejeitam o apóstolo Paulo que eles acusam de apostasia contra a lei. Eles praticam a circuncisão e perseveram nos costumes legais e nas praticas judaicas, ao ponto de adorarem Jerusalém como sendo a casa de Deus[5].

Esses dados são suficientes para mostrar que no começo do segundo século, Igreja helenista e Igreja judeu-cristã se encontram em plena crise. Podemos notar assim dois tipos de cristianismo independentes: De um lado, se encontra uma pequena comunidade judeu-cristã, vivendo segunda as práticas e os rituais judaicos e do outro, se encontra a grande Igreja alimentada por uma teologia paulina e livre das observações judaicas. Alguns cristãos helenistas, em conflito com os judeu-cristãos, chegam mesmo lhes negar a salvação, afirmando que a observação da lei judaica é incompatível com a pertença ao Cristo. Mas contra essa idéia Justino, no meio do segundo século, reage. Justino diz:
se por uma fraqueza de espírito os judeu- cristãos querem continuar a observar as leis que Moises prescreveu, porque o povo tinha o coração duro, e ao mesmo tempo esperar no Cristo e observar as praticas eternas da justiça e da religião natural, se eles consentem de viver com os fiéis cristãos sem querer impor-lhes a circuncisão e a prática do Shabat, então eles podem ser acolhidos”. [6]

Do lado dos judeu-cristãos a divergência é igual: Alguns manifestam uma abertura com relação aos outros membros da Igreja e outros fazem prova de uma completa intransigência e tentam impor respeito à prescrição de Moises. Esta variedade de posições não é nova, desde o começo do cristianismo, elas já existiam.
Pelo o Dialogo com Trifon Justino nos revelam vários pontos do cristianismo do segundo século. Ele nos mostra que os heleno-cristãos não praticam as leis rituais do judaísmo, não guardam mais o Shabat e alguns negam mesmo a salvação aos judeu-cristãos. O que prova que neste período a Igreja e Sinagoga não caminham mais juntas, entre as duas existe já uma diferença clara para os fieis. Do outro lado ele nos mostra também que o judeu-cristianismo constitui ainda uma opção na Igreja, em todo caso ao menos para ala mais liberal da grande Igreja. Porém se vê claro que se a opção judeu-cristã não é ainda sinônimo de heresia ela está a um passo de se tornar. Pois o judeu-cristianismo parece ser apenas tolerado na grande Igreja heleno-cristã, sem o direito de fazer adeptos.
 A Igreja que triunfou foi a heleno-cristã. O judeu-cristianismo que vai existir até o IV século, se resumirá numa minoria da qual a extensão geográfica se limitará a Transjordânia e a Síria.
Ao contrário a grande Igreja heleno-cristã, que no principio, foi influenciada pelo judaísmo, se distancia, ela mesma, pouco a pouco do judaísmo até criar uma identidade própria apesar de ter conservado vários elementos do judaísmo. Com o decorrer dos séculos esta distância se acelera cada vez mais a ponto de se criar na grande Igreja uma teologia de substituição que como conseqüência drástica dá origem ao anti-semitismo na Igreja.


  1. BIBLIOGRAFIA 
.
 FLUSSER, David. O Judaísmo e as origens do Cristianismo. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2002

FROHLICH, Roland. Curso básico de História da Igreja. São Paulo: Paulus, 2005

MAYER, Judite Paulina. O judaísmo no limiar da era cristã até o II° século. Apostila apresentada no módulo do Programa Bíblico: Judaísmo e cristianismo no I século. Centro de Formação Bíblica Nossa Senhora de Sion. Jerusalém, 2009

MIRANDA, Evaristo E. MALCA, José M. Schorr. Sábios Fariseus. São Paulo: Loyola,
2001

NETO, Manoel Ferreira de Miranda. Introdução à história das relações entre judaísmo e cristianismo. Apostila apresentada no módulo do Curso de Especialização Latu Sensu em Cultura Judaico-Cristã, História e Teologia: Introdução à história das relações entre judaísmo e cristianismo. Centro Cristão de Estudos Judaicos. São Paulo, maio de 2007.

OVERMAN, Andrew J. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo formativo. São Paulo: Loyola, 1997

PASSETO, Elio. Sinagoga e Igreja: desencontro e encontro. Apostila apresentada no módulo do Curso de Especialização Latu Sensu em Cultura Judaico-Cristã, História e Teologia: Sinagoga e Igreja: desencontro e encontro. Centro Cristão de Estudos Judaicos. São Paulo,  junho de 2007.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. O povo judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bíblia Cristã. São Paulo: Paulinas, 2002

PRIETO, Christine. Cristianismo e Paganismo. São Paulo: Paulus, 2007

SANDERS, Ed Parish. Paulo, a Lei e o Povo Judeu. São Paulo: Paulus, 2009

SCARDELAI, Donizete. Da religião bíblica ao judaísmo rabínico. São Paulo: Paulus, 2008

SKARSAUNE, Oskar. À sombra do Templo. São Paulo: Vida, 2004

VERMES, Geza. Religião de Jesus, o Judeu. Rio de Janeiro: Imago, 1995

VIDAL, Marie. Um Judeu chamado Jesus- Uma leitura do evangelho à luz da Torá. Petrópolis: Vozes, 2000


[1] MIRANDA,Manoel, Introdução à história das relações entre judaísmo e cristianismo
[2] MAYER, Judite Paulina, O judaísmo no limiar da era cristã até o segundo século d.c.
[3] Todos os textos bíblicos são extraídos da Bíblia de Jerusalém
[4] Sanders, Paulo a Lei e o povo Judeu, p.216
[5] Ireneu de Lyon, Adversus Haereses
[6] Justino, Diálogo com Trifão

Comentários

  1. Marivan, parabéns pelo blog e pelo artigo com excelentes referências.
    Paz e Bem !
    Cristiano

    ResponderExcluir
  2. Cristiano estou agradecido por seu comentário.

    ResponderExcluir
  3. Quando iniciei minha pesquisa diletante acerca da origem do cristianismo, eu já tinha uma ideia formada que pode parecer esdrúxula: nada de Bíblia, teologia, mitologia e para que o Novo Testamento fosse escrito, o que esse mesmo mundo poderia me contar a respeito dessa curiosidade histórica? Afinal, o que acontecia nos quatro primeiros séculos no mundo greco-romano, entre gregos, romanos e judeus? Ao comentar o livro “Jesus existiu ou não?”, de Bart D. Ehrman, exponho algumas das conclusões as quais cheguei e as quais o meio acadêmico de forma protecionista insiste ignorar.

    http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/paguei-pra-ver

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